quarta-feira, 13 de maio de 2009

A PRAIA



Uma onda bateu forte na areia molhando minhas pernas quase até os joelhos. Eram quase quatro da tarde de uma quinta-feira, até então muito comum, como todas as outras.
Como de costume, me apressei nos afazeres da casa, a fim de correr para a praia – o único lugar onde tenho me encontrado feliz ultimamente, desde que perdi o emprego no salão de cabeleireiros.
O salão ficava num bairro afastado. Todas as manhãs eu me espremia durante cinqüenta intermináveis minutos, num transporte precário e cheio. Sempre cheio. Ninguém nunca faltava. Estavam todos lá. As mesmas pessoas. Os débeis atores da minha comédia dramática diária.
Desde que perdi o emprego no salão de cabeleireiros, onde passava o dia lixando, pintando e tirando cutículas de unhas estranhas, ouvindo o mesmo tagarelar vazio de sempre. O gesto automático da mão conduzia o alicate rapidamente, tirando o excesso de carne que crescia por sobre as unhas. Às vezes, seguidos a esses movimentos, vinham gritos e puxões rápidos de mãos à boca no afinco de estancar o sangue que saltava às portas abertas pelo alicate em minhas mãos. Estava tão perdida comigo mesma. Pensava na praia. Era meu paraíso particular, para onde eu fugia daquelas mulheres frívolas que falavam sem parar, gesticulavam e vez ou outra, me incluíam em seus monólogos. Eu balançava a cabeça e deixava escapar um riso tímido, como quem estivesse assentindo para qualquer que fosse a arguição. Suas palavras soavam como as ondas do mar batendo na areia da praia. O som das ondas do mar. Era a única coisa que eu escutava.
Uma conversa paralela no salão me fez perder a coordenação e arrancar de um só golpe parte do dedo de uma cliente. A mulher deu um grito fino, estridente, chamando atenção dos demais no lugar. O sangue escorria pelos seus pulsos magros trêmulos manchando a toalha branca em seu colo. A gritaria pôs em pânico a todos, menos a mim. Eu continuava estática. Parecia dopada. Percebia toda aquela confusão, mas nada me tirava o olhar fixo. Continuava sentada em meu banquinho com o alicate ainda sujo na mão, tentando apenas me lembrar o que me fez perder a concentração.
O que me fez perder a concentração me fez também perder o emprego de manicure. Desde então, passava as manhãs, a cuidar de uma senhora cega, até que sua filha retornasse do trabalho. De tarde, tinha o tempo livre para me dedicar à costura e as coisas da casa.

Era mês de maio, e a água gelada bateu num rompante sob a areia chamando minha atenção para alguém que caminhava de encontro a mim, tão absorto em seus pensamentos que não notou a minha presença. Continuei de cabeça baixa e fingi também estar perdida nos meus. Segui um pouco mais adiante sem olhar para trás. Observava o desenho que minhas pegadas deixavam na areia. Tentava imitar algumas pegadas esquecidas de pés bem maiores que os meus. Olhei, de soslaio, para trás e certa de que ninguém me observava, dei meia volta. Voltei pisando seus passos.

Era um homem de meia idade, moreno, cabelos lisos. Tinha o corpo robusto. Poder-se-ia dizer que estava acima do peso. Eu nunca fui uma pessoa corpulenta, nem musculosa, mas sempre tive boa forma e bastante força. Não era muito alto. Se nos colocássemos de costas um para o outro, talvez alguns dedos nos apontariam a diferença no tamanho.
Seus cabelos bem tratados brilhavam, mesmo sem a ajuda da luz do sol, que já havia cumprido seu papel naquele dia. Podia-se ver que era uma pessoa polida.
Não diria que é um homem bonito. Não tinha conseguido perceber qualquer traço quando o vi de frente por apenas alguns segundos pela primeira vez. E agora caminhava atrás dele, tentando fazer uma análise, não percebendo quando ele subitamente se virou e me encarou. Seus olhos eram de interesse desconfiança. Realmente não era um homem bonito. De frente, parecia ainda mais forte. Riu-se um pouco e vendo minha completa falta de ação, iniciou um diálogo.

Já passava das cinco horas. Estávamos sentados na areia, um pouco mais acima da areia molhada. Na parte árida onde alguns capins crescem aleatoriamente. A conversa estava agradável. Ele sabia conduzir os assuntos, não deixando buracos como acontece quando conversamos com desconhecidos e não estamos interessados. Ao contrário. Um assunto puxava o outro.
Era, definitivamente (pelo menos para mim, que a duras penas terminei o ensino médio) um homem culto. Talvez fosse professor, ou político, ou executivo de alguma grande empresa. Falava bem, sabia se expressar. Era bastante articulado e divertido. Conversamos sobre a praia. Sobre como ela acalmava os nossos pensamentos. Caminhar pela areia da praia tinha se tornado uma terapia. Ali, sozinha, conseguia concluir os projetos que começavam, se desenrolavam e tinham fim. Os meus grandes objetivos. Os sonhos. Eles só ousavam se mostrar em minha cabeça. Se eu tentasse colocá-los em prática na vida fora dali, quase desapareciam, enfraqueciam. Não consegui lembrar com tanta paixão. Mas na minha mente, tudo acontecia muito bem orquestrado. Conseguia iniciar, desenvolver e tendo concluído, não me interessava colocá-los em prática aqui fora, no mundo. Não tinha a mesma força. Perdiam a graça.

E foi nesse perfeito estranho que me vi refletida. Nunca tivera uma conversa tão aberta e agradável com qualquer pessoa. Parecia que estava conversando comigo mesma.
Conseguia me ver em suas palavras, nos seus gestos, seu sorriso. O vento batia em seus cabelos. Um braço apontava em alguma direção acima da linha do horizonte, enquanto o outro pousava em uma das pernas. Estava calmo e me falava doce e suave. Já não ouvia sua voz. Só as ondas do mar arrebentando. Eu estava sentada ao seu lado contemplando o mar, completamente perdida no misto da sua voz com as ondas. Comecei e desfazer o aro do chaveiro que tinha nas mãos, num movimento mecânico. O aro agora era uma haste de arame com uma ponta bastante afiada. Segurei na palma da mão fechada, deixando sair pelo dedo mínimo, o objeto pontiagudo. Sem pensar muito, com um golpe certeiro, rasguei o arame em seu pescoço traçando um corte profundo que ia quase de uma orelha a outra. Um misto de pavor e socorro tomou conta do seu rosto. Correu as mãos ao pescoço e sentiu o peito nu ser inundado pelo sangue quente. Tentava gritar. Pulou em cima de mim como um bicho em fúria, me desferindo várias pancadas no rosto e na cabeça, me sujando de sangue. Estava tão desesperado que não coordenava seus movimentos e acertava mais a areia que a mim. Deixei-me golpear, como que em correspondência pelo que lhe havia feito. Ele jogou-se na areia me olhando, enquanto eu rapidamente me coloquei de joelhos ao seu lado. Golpeei-o de novo. Dessa vez, a lâmina fez o percurso contrário, indo ainda mais fundo. Seus olhos esbugalhados me levaram de volta ao salão, na tarde em que perdi o emprego. O sangue, o desespero. Mas dessa vez, não havia platéia. Não havia o que perder.

Enquanto ele agonizava na areia, desci até a beira da água. Lavei o chaveiro, as mãos e a roupa suja. O sol se despedia à minha frente, alguns pássaros se apressavam de volta aos seus refúgios. As marolas quebravam brandamente aos meus pés. Tudo estava na mais perfeita paz. Passei as mãos com água no rosto. Não havia nenhuma emoção para recompor.

Caminhei em direção de casa sem pressa e num gesto mecânico, sem olhar para o que fazia, comecei a dar a antiga forma de aro ao chaveiro.

13/05/2009 - Patricia Fergos

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